A DESPEDIDA
Mariana passava todos os dias em frente àquele prédio.
Pintado de azul e branco, o edifício de dois andares abrigava uma instituição espírita que fazia obras de caridade em boa parte da cidade.
Ela tinha sofrido uma grande perda recentemente e seu coração estava cheio de tristeza e amargura.
A Instituição se chamava “Casa de Orações e de Esperança” e algumas de suas amigas lhe tinham dito que, ali, era um lugar de paz, estudos e reflexões e que era possível até mesmo ter notícias de algum parente que já não estivesse mais nesta vida.
Quem sabe, ali, ela não encontrasse algo que lhe amenizasse o sofrimento e acabasse com a infindável dor que lhe aprofundava o coração?
Mariana tinha apenas vinte e seis anos e, com dois anos de casada, seu marido fora assassinado barbaramente em um assalto sendo que, afinal, os bandidos não lhe levaram nada, a não ser sua vida.
Seu marido, Gabriel, era um engenheiro formado recentemente e estava apenas começando a sua vida profissional. Deixou um filho com seis meses de vida e que, portanto, jamais conheceria o seu pai. A criança se chamava Roberto, como o seu avô paterno, também já falecido.
Uma história triste!
Mariana era professora de inglês em uma escola particular e não podia deixar transparecer a sua tristeza diante de seus alunos adolescentes, embora todos soubessem do trauma pelo qual ela tinha passado.
Ela conhecera Gabriel ainda criança, ele com doze e ela com nove anos. Seus pais eram vizinhos e amigos e os dois passaram a infância brincando juntos, estudaram na mesma escola e, durante a adolescência o amor despertou em ambos e, então, perceberam que tinham nascido um para o outro.
A escola em que estudavam, quando adolescentes, se chamava Padre Coelho de Souza. Era um prédio grande e tinha uma árvore secular em seu pátio.
Ali, um dia, usando um canivete de Gabriel os dois desenharam, no tronco da árvore, dois corações entrelaçados com seus nomes inscritos. Mariana escreveu Gabriel e Gabriel escreveu Mariana. A intenção era completar com a frase “amor eterno”.
Acontece que a campainha tocou e eles tinham, naquele momento, uma temível prova de matemática, sendo assim, não tiveram tempo de completar a frase que ficou “amor eter..” Incompleta.
Os dois nunca se lembraram de voltar lá e completar a inscrição que está assim até hoje, escondidinha, no tronco da gigantesca árvore.
Foram felizes por muito pouco tempo até aquela noite fatídica em que Gabriel voltava do trabalho e parou o carro em frente de sua casa enquanto abria o portão da garagem.
Foi o tempo suficiente para os marginais perpetrarem a sua maldade.
O rapaz não reagiu, mas, mesmo assim, um deles disparou dois tiros contra o peito de Gabriel que teve morte instantânea. Sequer teve a chance de ver a família por uma última vez.
Os assassinos foram presos e condenados, mas isso não aliviou a dor da jovem mulher. Ela chorava todos os dias e somente a presença do pequeno Roberto lhe dava coragem para seguir em frente. Esquecer Gabriel ela não conseguia, afinal, foram muitos anos de convivência e apenas dois de casamento.
Telma era uma das melhores amigas de Mariana e, com muita frequência, ia visitá-la e tentar distrair a amiga.
Sendo frequentadora assídua, há muitos anos da “Casa de Orações e de Esperança”, Telma, de vez em quando convidava a amiga para ir com ela, sem compromisso. Ela gostava do lugar, dizia que ali só havia pessoas amigas que se importavam com o próximo e que, talvez ela gostasse.
De fato, de tanto Telma insistir, Mariana um dia aceitou o convite.
Deixou o pequeno Roberto na casa de seus pais e, embora um pouco desconfiada, acompanhou a amiga em uma de suas idas ao local.
Mariana, logo na entrada, ficou surpresa com a gentileza das pessoas que a recebiam. Deixavam-na inteiramente à vontade e, no primeiro dia, ela quis apenas observar o que acontecia em volta.
Telma não insistia em nada e apenas convidou-a para participar de uma reunião plenária que iria ocorrer naquela noite com alguns palestrantes.
Um senhor, de nome, Francisco Caldeira, aparentando uns sessenta anos, era o principal palestrante e o tema era a psicografia.
Ele falava de casos em que pessoas encontravam conforto nas sessões de psicografia porque, afinal, conseguiam informações de seus entes queridos que haviam partido.
Aquilo chamou a atenção de Mariana, mas ela, simplesmente, não acreditava em nada do que via ou ouvia.
Como seria possível alguém falar com os espíritos ou mesmo receber deles alguma mensagem e, como ela iria saber se era mesmo o seu Gabriel?
Depois de algumas idas ao local, Mariana foi se interessando pelas sessões de psicografia até que, incentivada por Telma, resolveu assistir uma delas.
Era um sábado, à noite. Caíra uma chuva fininha o dia todo e fazia um frio de doze graus.
No local havia umas quarenta pessoas, todas ávidas por receberem alguma notícia de um parente que tinha partido.
Mariana e Telma sentaram-se bem próximas, porém, na última fileira de cadeiras.
Era a primeira vez que Mariana ia ali e o objetivo era observar apenas.
Francisco Caldeira, em um dado momento, repentinamente, começou a escrever freneticamente, sem parar, de forma intensa. O homem não parava um só segundo e depois de uns dez minutos, fez uma pausa como quem procura ar e disse:
– Tenho aqui uma mensagem para uma pessoa. Se quiser, não precisará se identificar.
Francisco, então, começou a leitura.
“Minha querida Mariana!
Sinto muita saudade de você e de nosso Robertinho. Sei que ele está bem de saúde e bem cuidado, mas estou preocupado com você pois sei que está sofrendo muito por minha causa.
Quero lhe dizer que estou bem, fui muito bem acolhido neste plano e estou muito feliz. Tudo aqui é maravilhoso e estou no meio de espíritos bondosos que me ensinam o que fazer para alcançar a minha evolução.
Saiba que não esqueci de você e sei que você não se esqueceu de mim, no entanto, a sua vida tem que prosseguir, para o seu bem e para o bem de nosso filho.
Por isso, quero lhe dizer que não precisa mais se preocupar comigo. Sei que a saudade é muito grande, mas, por favor, siga a sua vida em paz e procure encontrar a felicidade porque você foi a pessoa mais importante que cruzou o meu caminho e, saiba, nós precisávamos fazê-lo porque faltava um lapso de comprometimento de nossa parte, de um para com o outro, para que nossos destinos se selassem para toda a eternidade.
Seja feliz, meu amor e cuide do nosso filhinho.
Ah! Quase me esqueci. Quero apenas lhe pedir uma coisa: quando você puder, volte àquela árvore, lá da escola, e complete a frase para que o nosso amor seja eterno de verdade.
Mariana irrompeu em lágrimas e seu rosto passou a transmitir a mesma paz que ela sentia quando estava junto do seu Gabriel.
No dia seguinte, com a permissão do diretor da escola, ela voltou à árvore e, com o mesmo canivete que ela guardara do seu amado, terminou a frase.
Hoje é possível ver, no tronco daquela árvore, dois corações entrelaçados com os nomes Mariana e Roberto e a inscrição “amor eterno”.
A ÚLTIMA ESPERANÇA
Era o final do século 18. Nos pampas do rio Grande do Sul, a manhã cinzenta e o vento minuano soprando fortemente anunciavam que tempos muito frios estavam chegando. A paisagem, escondida sob a neblina espessa, mal deixava ver a beleza daqueles campos sem fim. Um arroio deslizava preguiçosamente a alguns metros dali, onde os peões matavam a sede.
Ao calor de uma fogueira, Ezequiel atrela o seu belíssimo cavalo baio, marrom com manchas brancas espalhadas pelo corpo. É um animal imponente, forte e rápido. Adequado para grandes cavalgadas pela região.
Ezequiel sorveu o último gole de seu chimarrão, apagou a fogueira cuidadosamente, ajeitou o poncho que o protegia do frio de oito graus negativos, deu uma última arrumada no espesso bigode negro e montou em seu belo Brioso, nome mais que adequado ao valente companheiro do gaúcho. O dia estava apenas começando e eram muitos os cavalos que Ezequiel tinha que arrebanhar no pasto e levar para a fazenda “Última Esperança”, belíssima propriedade de seu patrão Anastácio, homem tão rico quanto mal para com seus empregados e escravos, especialmente com estes últimos.
A tarefa de Ezequiel não era das mais fáceis, mas ele era um peão experiente e, apesar do minuano e do frio cortante que quase lhe dilaceravam o rosto, o bravo gaúcho dos pampas não arrefecia um só momento até reunir o último animal que, agora, ele tocava serenamente em direção a “Última Esperança”.
O valente peão tocou os animais em direção ao curral novo e se dirigiu para o fogo de chão que ardia ali próximo e onde uma gaita tocava velhas canções do cancioneiro gaúcho. O cheiro da carne assada corria solto e os homens serviam-se de suculentos pedaços de costela.
Sentado em um canto, afastado dos empregados da fazenda, um negrinho, acocorado, tremia de frio e, faminto, olhava, com um esticar de olhos, os belos pedaços de costela assando ao fogo.
Ezequiel era um homem bom.
Levantou-se, empunhou a sua linda faca, cortou um belo pedaço de costela e o entregou ao negrinho.
Emiliano – assim se chamava o negrinho – olhou agradecido para aquele homem à sua frente e saiu em disparada para dividir o pedaço de carne com os seus irmãos.
Anastácio era um homem mal.
Do portal da bela casa da fazenda, o fazendeiro tudo observou e não gostou nem um pouco decidindo que iria punir alguém. Não poderia fazer nada contra Ezequiel porque ele era um dos seus melhores peões, então, decidiu vingar-se no pobre Emiliano.
O dia seguinte mal amanhecera e Anastácio, de chicote em punho usando vistosas bombachas, camisa grossa para protege-lo do frio e um lenço vermelho em volta do pescoço, gritava alto e raivosamente da soleira da varanda da bela casa.
– Emiliano! Emiliano!
O negrinho apareceu correndo, usando umas calças velhas, sujas e com grandes rasgões no joelho. Uma camisa igualmente velha e puída que não o protegia, nem de longe, do frio terrível que fazia naquela manhã do rigoroso inverno gaúcho.
– Sim, meu patrão! – disse o negrinho.
Não era mais do que um garoto. Tinha catorze anos, magrinho, por desnutrição, analfabeto e nenhuma expectativa de vida.
– Quantas vezes vou ter que te chamar, moleque safado? – esbravejou o cruel patrão.
– Me desculpe, patrão.
– Tem doze cavalos sumidos lá pelos campos. Trata de ir atrás e me trazer todos aqui antes do anoitecer senão vou arrancar o teu couro por chibatadas – disse Emiliano e, a seguir, estalou o chicote no ar como que açoitando o pobre menino para cumprir a sua tarefa.
Anastácio ficou ainda alguns minutos tomando o seu chimarrão enquanto observava o pobre negrinho desaparecendo no nevoeiro. Não eram mais do que seis horas da manhã.
Ezequiel, que já estava de pé quando o patrão começou a gritar, observou toda a cena e esperou que o patrão resolvesse entrar. Colocou os arreios em Brioso e partiu em disparada na direção em que o negrinho tinha ido.
Em pouco tempo encontrou o pobre menino, descalço e tiritando de frio. Chorava de fome, de frio e de desespero, pois sabia que não iria conseguir reunir a tropa que estava perdida, ainda mais, a pé.
Ezequiel aproximou-se calmamente do menino. Apeou, deu-lhe um pedaço de pão e uma manta para amenizar o frio e, após o menino matar a fome, disse-lhe:
– Vi o que se passou lá na fazenda. Não te preocupes, pois vou te ajudar na busca aos animais.
– Obrigado “seu” Ezequiel, mas se o patrão souber ele me mata de tanto me bater.
– Não tema. Ele não vai saber.
O peão montou em seu cavalo e ajudou o menino a montar na garupa.
Experiente, o peão encontrou todos os animais em pouco tempo e ajudou o negrinho a levá-los até bem próximo da fazenda.
– Daqui tu segues só, pois não devemos deixar que o patrão saiba que eu te ajudei.
Feliz da vida, Emiliano chegou tocando os animais. Montava, em pelo, o cavalo da frente e conduzia com extrema perícia a pequena tropa para o curral.
Anastácio olhava tudo sentado em sua cadeira de balanço enquanto tomava o seu chimarrão. Ficou satisfeito porque os cavalos foram recolhidos, mas o seu ódio pelo negrinho escravo aumentou ainda mais.
Os dias passavam e os castigos de Anastácio em Emiliano tornavam-se cada vez mais frequentes e ninguém podia fazer nada, pois o homem era muito poderoso e contavam histórias que diziam que ele já tinha se livrado de muitos inimigos que sumiam misteriosamente.
Mas Emiliano tinha uma habilidade extremamente útil. O piá sabia tratar de mordidas de cobras e a região era infestada de cobras coral verdadeiras.
O menino tinha observado que um dos cavalos da fazenda fora picado seis vezes por cobras corais verdadeiras e tinha sobrevivido. Curioso, imaginou que o animal agora teria alguma “proteção” em seu sangue contra o veneno daquele réptil e achou que, se, de alguma forma, outro animal fosse picado e recebesse rapidamente um pouco do sangue do equino, poderia escapar.
O que o jovem escravo não sabia era que tinha ocorrido um processo de imunização no cavalo que, após sucessivas picadas por aquela espécie de cobra, produzira, realmente, anticorpos contra o veneno.
A fazenda também tinha criação de ovelhas e, um certo dia, um peão chegou com um desses animais na garupa do cavalo dizendo que ele tinha sido picado por uma cobra coral verdadeira. O réptil, ele tinha matado e trazido em uma sacola como prova.
Emiliano ouviu a estória e percebeu que o animal iria morrer. Então, pediu autorização ao peão da fazenda para tentar injetar o sangue do cavalo imune nas veias da ovelha.
Como o patrão não estava o peão resolveu autorizar.
Usando uma seringa rudimentar o garoto retirou sangue do cavalo e aplicou no pescoço da ovelha. O animal resistiu ao primeiro dia e, no dia seguinte, o garoto repetiu a injeção de sangue equino. Repetiu esse processo por quatro dias seguidos e, no quinto dia, o animal estava de pé.
Quando Anastácio chegou deram-lhe a notícia, mas ele não se animou nem um pouco, pelo contrário, aplicou tremenda surra no negrinho que o deixou desfalecido, amarrado a um tronco de árvore. Só permitiu que o soltassem no dia seguinte.
O menino quase morreu e, como tinha ficado bastante debilitado, o patrão deixou-o em paz por algum tempo.
Passados alguns meses, Anastácio saiu com a família para um passeio a cavalo pelos pampas, aproveitando o agradável clima de primavera que fazia. Sentou-se na relva com a esposa e a única filha, Gabriela, de apenas dez anos.
De repente a menina deu um enorme grito de dor. Anastácio viu quando a bela cobra coral fugiu pelo capim deixando a sua filha aos prantos.
Em pouco tempo a menina estava com as pupilas dilatadas, a vista turva, movimentava as pupilas com visível dificuldade e tinha que se esforçar muito para respirar.
Naquele momento, o orgulhoso fazendeiro não teve dúvidas. Montou em seu cavalo, colocou a criança em sua cela, à sua frente, e cavalgou sem parar em direção a Última Esperança. De fato, ele tinha uma última esperança: fazer com o que Emiliano repetisse o milagre feito com a ovelha e pudesse salvar a sua filha.
Chegando à fazenda, mandou chamar o negrinho.
O garoto chegou assustado, com medo de apanhar de novo, mas o que ele viu foi um homem desesperado diante de uma criança deitada na cama, respirando com grande dificuldade, os olhos fixos no teto da casa e prestes a falecer.
Anastácio olhou para o escravo e, humildemente, com lágrimas nos olhos disse ao menino:
– Aplica o mesmo remédio em minha filha, por favor.
O garoto não perdeu tempo e rapidamente, foi até o curral, retirou o sangue do animal e voltou. Aplicou o conteúdo na veia da menina que, aos poucos, começou a respirar melhor.
Após três dias do processo, a menina já estava de pé e começava a conversar normalmente.
Anastácio, agora um homem humilde, aproximou-se do jovem escravo e disse:
– Tu, a quem eu tanto maltratei, eras a minha última esperança de salvar a minha filha. Peço-te que me perdoes. Podes me pedir o que quiseres e eu te darei.
– Minha liberdade! – disse o garoto.
– Podes ir para onde quiseres, agora és livre. – disse o outrora arrogante Anastácio.